quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

CLUBE DE LEITURA - JANEIRO 2021

Com uma periodicidade mensal (à exceção de agosto), o Clube de Leitura destina-se a promover o prazer da leitura partilhada. As reuniões decorrem à volta de um livro previamente escolhido e lido por todos, proporcionando a convivência e a discussão entre quem gosta de ler e explorar os livros lidos, tornando a experiência da leitura ainda mais estimulante. Pontualmente poderá ter um escritor/dinamizador convidado.

O Clube de  Leitura reunirá a 28 de janeiro de 2021, pelas 21h00, através do zoom, para a abordagem da obra "Uma Vida à Sua Frente" de Romain Gary.


Sinopse:Uma vida à sua frente é narrado por Mohammed, um rapaz árabe de 14 anos, órfão, que vive no bairro pobre de Belleville com Madame Rosa, prostituta reformada e sobrevivente de Auschwitz. Publicado em 1975, o livro teve êxito imediato: vendeu milhões de exemplares em todo o mundo, foi traduzido em mais de vinte línguas e adaptado para o cinema num filme com Simone Signoret. Nesse mesmo ano, recebeu o Prémio Goncourt.

 
Quem é Roman Gary? Romain Gary nasceu em 1914 em Vilnius, na Lituânia (então Polónia). Judeu de origem russa, emigrou com a sua mãe para Nice em 1928. Em 1940 junta-se ao general de Gaulle e às forças livres francesas em Londres e combate como navegador da esquadrilha «Lorraine» até ao final da guerra. Ferido, recebe a condecoração suprema dos combatentes franceses, Compagnon de la Libération e foi um dos poucos sobreviventes dos duzentos homens da esquadrilha. O êxito dos seus primeiros romances, Educação Europeia e As Raízes do Céu (Prémio Goncourt 1956) tornaram-no imediatamente um escritor famoso em todo o mundo. Ocupou vários postos diplomáticos na Europa e nos EUA. Em 1975, escrevendo sob o pseudónimo Émile Ajar, ganhou de novo o Prémio Goncourt (caso «impossível» na história do prémio) com Uma Vida à Sua Frente. Gary suicidou-se em 1980, pouco mais de um ano depois do suicídio da sua ex-mulher Jean Seberg. Deixou escrito um pequeno opúsculo intitulado Vida e Morte de Émile Ajar, texto extraordinário onde revelou a «mistificação» Ajar.

Análise Graça Serra:

O narrador usa várias vezes esta expressão:

p. 21: "O Dr. Katz ralhou com a Madame Rosa que nem um desalmado e gritou-lhe que eram rumores de Orleães. Os rumores de Orleães é quando os judeus do pronto-a-vestir não drogavam as mulheres brancas para mandá-las para bordeis..." 
 
p. 30: "O Sr. Hamil chega-nos de Argel (...) Possui também um tapete que mostra o seu outro compatriota, Sidi Ouali Dada, que está sempre sentado no seu tapete de orações puxado por peixes. Pode parecer pouco sério, peixes que puxam um tapete pelos céus, mas é a religião que quer isso".

Em 1541, o imperador Carlos V (Carlos I de Espanha) atacou Argel por mar. Segundo a lenda, Sidi Ouali Dada entrou no mar e começou a bater na água com o seu bastão mágico, provocando uma tempestade que destruiu boa parte da frota de Carlos V. Graças a este milagre, tornou-se um herói e um santo. Faleceu em 1554. 
 

p. 36: ""Ainda por cima estava sempre a sorrir para mim e não é verdade que os negros comem crianças no pão, são apenas rumores de Orleães..."
 
p.42: "Era muito cómico esse medo que a Madame Rosa sentia pela campainha. A melhor altura para isso era de manhã (...) Um de nós levantava-se, saía para o corredor e tocava à campainha. (...) Madame Rosa jorrava da cama e precipitava-se pelas escadas abaixo. (...) Quando ela percebia que não eram os nazis, entrava em fúria e chamava-nos filhos da puta".


p. 52: "Todos os sábados à tarde ela punha o seu vestido azul (...) e ia sentar-se num café francês, a Coupole, em Montparnasse, onde comia um bolo". 

"La Coupole" é uma mítica cervejaria situada no bairro Montparnasse, na avenida com o mesmo nome. Foi inaugurada em dezembro de 1927 e teve um rápido sucesso. A decoração art-déco é sumptuosa. Foi adotada por muitos artistas, intelectuais, atores e atrizes. A sala tem 33 pilares simétricos, cobertos por LAP verde, encimados por colunas que foram pintadas por diferentes pintores famosos. Numa delas é possível ver Josephine Baker com umas plumas vermelhas a dançar. Foi inscrita nos Monumentos Históricos em 12 de janeiro de 1988. Em 1993 foi inaugurada, no centro da sala, uma escultura em bronze do escultor Louis Derbré, chamada "La Terre".  

















p. 75: "À direita estava um carro da polícia com chuis prontinhos (...) Saí para ver, com as mãos nos bolsos e aproximei-me da camioneta da polícia(...) Comecei a assobiar "En passant par la Lorraine" porque não tenho uma cara daqui e já estava um a sorrir para mim".    

É uma canção popular francesa para crianças. A melodia e a letra remontam ao séc. XVI (1535) e o seu autor foi Roland de Lassus, embora em 1885 a letra tenha sido modificada por motivos políticos.  


p. 90:  "Havia um rumor de Orleães que a judia nos matava à fome".

p. 99: "Estávamos na altura em que o rumor de Orleães dizia que os trabalhadores do Norte de África tinham cólera que traziam de África...".

p. 125: "Por isso, se ouvires rumores de Orleães para me porem no hospital, pede aos teus amigos para me darem a injeção certa..."

"La Rumeur d'Orléans" é um assunto mediático que se desenrola em abril de 1969 em Orléans e ganha força em toda a França. Segundo o rumor, transmitido de boca em boca, mulheres jovens são raptadas em cabines de prova  de várias lojas de roupa da cidade, todas administradas por judeus, com o objetivo de as prostituir no exterior. Apesar de nenhum desaparecimento ter sido comunicado à polícia, o rumor persiste e só é considerado extinto em fim de junho. Deu origem a um ensaio que provou que havia uma carga de anti-semitismo associada.  

Momo usa esta expressão para evocar qualquer informação propagada que tenha a ver com preconceitos ou inquietações.  

p.113: "Abri a porta devagarinho e a primeira coisa que vi foi a Madame Rosa, toda vestida, no meio do quarto, ao lado de uma pequena mala (...) - Eles vêm buscar-me. Disseram para esperar aqui, vêm com camiões e vão levar-nos ao Velódromo com o estritamente necessário. - Eles quem? - A polícia francesa. Deram-nos meia hora e disseram-nos para levarmos só uma mala. Vão pôr-nos num comboio e transportar-nos até à Alemanha. Já não terei problemas, teremos cama, mesa e roupa lavada".

Mais conhecida como "La Rafle du Vél' d'Hiv", foi o maior aprisionamento em massa de judeus realizado em França durante a Segunda Guerra. Entre 16 e 17 de julho de 1942, 13 152 pessoas, das quais quase um terço eram crianças, foram presas em Paris e arredores. 8160 foram detidas no Velódromo de Paris durante 4 dias, sem água nem comida, sob um calor insuportável. O cheiro era nauseabundo, devido à falta de casas de banho. A 18 de julho começaram as deportações para a Alemanha  e para Auschwitz, na Polónia. Menos de cem sobreviveram à deportação.
 

Crítica: 

[…] um clássico sobre como misturar o sórdido e o belo na mesma página. 
Expresso

 Excelente!Liliana Carvalho | 14-10-2020

É uma espécie de ode à velhice, uma tremenda introspecção da condição humana, no seu pior e no seu melhor, mas especialmente no seu pior... é uma narrativa bruta e directa, assertiva e emotiva, escrito de uma forma como se fosse do ponto de vista de um pré-adolescente, que vê o mundo de uma forma muito aberta e adulta, mas a sua forma de se expressar é sóbria, mas algo infantil, absolutamente arrebatador. Aborda temáticas como a prostituição, racismo, intolerância, religião, violência, velhice, amor, amizade, desespero, esperança, fraternidade, tudo numa perspectiva de alguém muito jovem que teve de crescer depressa, que desde muito cedo levou com a vida logo de frente, sem filtros nem atenuantes e com um excelente toque de humor, é uma narrativa inteligente, que nos faz reflectir sobre alguns aspectos pertinentes da vida. Excelente!

obrigatório fernanda | 15-11-2019

num tom leve e bem humorado, o autor dá-nos conta das fragilidades sociais. trata de temas contemporâneos e prementes, como a eutanásia ou o conflito entre judeus e árabes.Uma obra de génio. Susana Marques | 22-10-2016

Uma obra de génio
Susana Marques | 22-10-2016

Uma escrita deliciosa e uma história de amor lindíssima são as principais razões para toda a gente ler este livro. Momo é um personagem inesquecível. Gary era um génio! 

Emocionante
EN | 27-12-2015

Primeira vez que li este autor. Sem mínima sombra de arrependimento. Excelente obra. Recomendo.

 

CLUBE DE LEITURA - DEZEMBRO 2020

Ontem, 16 de dezembro, pelas 21h horas, através do Zoom, decorreu mais uma sessão do Clube de Leitura.

A sessão foi dedicada ao Natal. Para isso foram selecionados, previamente, dois contos de uma antologia de Vasco Graças Moura, "Gloria in Excelsis: histórias portuguesas de Natal".

"Noite de Consoada" de Altino Tojal, transporta-nos para o mundo solitário das pessoas que não têm ninguém com quem vivenciar a noite de Natal, porque todos os seus entes queridos já partiram. Então, têm o "coração cheio de epitáfios".

Ao presenciarem a felicidade e a euforia dos outros, sentem-se "vagamente cão". 

As duas personagens do conto são almas gémeas na solidão e vagueiam juntas pela cidade em efervescência natalícia por "túneis de luz, ouvindo música de sinos" e "sentem-se cada vez mais cão".

Sem o mínimo calor humano, ceiam o que há, contentam-se com pouco e pensam no sapatinho. Lamentam-se e desabafam porque as suas famílias "não ligam nenhuma a festas" e já estão a dormir.

É um texto melancólico, escrito por alguém que certamente já se sentiu nesta condição, no entanto, com algum sarcasmo implícito. Texto curto, mas suficiente, muito frugal, parco, onde há silêncios, a tristeza do luto, terminando com o encontro das duas personagens bafejantes, com frio, no cemitério, junto dos familiares que já partiram e "dormem sono pegado".

A noite de consoada possível de dois seres a precisarem de ser consolados, mimados porque os natais estão cheios de epitáfios no coração dos homens, que nunca mais vão ter um Natal igual ao da infância com a família reunida porque muitos já partiram.

O 2º conto selecionado foi "A noite em que prenderam o Pai Natal" de José Eduardo Agualusa, de 1999.

É a história do velho Pascoal, "albino, pele de osga e piscos olhinhos cor-de-rosa, sempre escondidos por detrás de uns enormes óculos escuros".

Através da vida da personagem e da piscina da qual ele era o zelador, percorremos os acontecimentos políticos e sociais a seguir à descolonização de Angola, a todo o processo e degradação desse espaço de lazer até à sua completa destruição pela guerra civil. Guerra essa que "regressou com muita raiva", gerando a anarquia e uma delapidação ainda maior das riquezas desse país. Um verdadeiro "urbicídio"!

A função do Pascoal, era ser o Pai Natal, "ficar em frente ao supermercado, vestido com um pijama vermelho e de barrete na cabeça (...) Assim vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar no loja.(...) O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam licença para tocar no saco. Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças.

- Paizinho Natal - implorou - me dá um balão".

Foi um natal especial para Pascoal, porque teve uma visão de uma senhora a sorrir, flutuando sobre o rubro das acácias, que o orientou para ele fazer o milagre das rosas, muito embora de plástico, "mas eram rosas"  para doar aos meninos pobres, "despardalados", da rua e fazê-los felizes na noite de natal.

Conto fantástico, de mestre! "Esse Agualusa goza de fininho..."

Também se sentiu falta dos encontros presenciais, da consoada do Clube com o arroz de pato. Sim, porque "o arroz é outra coisa", dos ovos verdes, da pavlova, dos brigadeiros, das rabanadas, dos diálogos cruzados, do carinho, dos miminhos a que nos habituamos a ter todos os anos.

Para o ano será melhor certamente. Esperemos. 

Altino Tojal (1939-2018)
José Eduardo Agualusa (1960-)




segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

CLUBE DE LEITURA - DEZEMBRO 2020

Com uma periodicidade mensal (à exceção de agosto), o Clube de Leitura destina-se a promover o prazer da leitura partilhada. As reuniões decorrem à volta de um livro previamente escolhido e lido por todos, proporcionando a convivência e a discussão entre quem gosta de ler e explorar os livros lidos, tornando a experiência da leitura ainda mais estimulante. Pontualmente poderá ter um escritor/dinamizador convidado.

O Clube de  Leitura de dezembro, que reunirá na semana de 14 de dezembro, pelas 21h00, através do zoom, para a abordagem da obra "Antologia de Vasco Graça Moura "Gloria in Excelsis: histórias portuguesas de Natal".

A obra pode ser lida na totalidade, mas foram selecionados dois contos seguintes:

1. "Noite de consoada" de Altino Tojal
2. "A noite em que prenderam o Pai Natal" de José Eduardo Agualusa








CLUBE DE LEITURA - NOVEMBRO 2020

No passado dia 26 de novembro, pelas 21h00, através do zoom, decorreu mais uma sessão do Clube de Leitura de novembro, para análise e discussão da obra "A valsa do adeus" de Milan Kundera.

“Se queremos compreender o mundo temos que abarcá-lo em toda a sua complexidade, na sua essencial ambiguidade”.

 

Por isso, para compreender melhor este romance, as personagens e o ambiente em que decorre é importante saber que Milan Kundera é um dissidente do regime comunista da antiga Republica Checa. Nasceu em 1929, em Brnö, na antiga Checoslováquia, exilou-se em França em 1975, fixou residência em Paris, adotando a nacionalidade francesa em 1981.

Autor de uma vasta obra, que abrange o romance, o ensaio e a poesia, é considerado um dos mais importantes escritores do século XX.

“A Insustentável Leveza do Ser”, publicada em 1983 é a sua obra mais aclamada pelos leitores e pela crítica, foi adaptada para cinema em 1988, sob a direção de Philip Kaufman e com Daniel Day-LewisJuliette Binoche e Lena Olin no elenco, o que terá contribuído para o tornar num autor reconhecido internacionalmente.

Entre outros, foram atribuídos a Milan Kundera o Prémio Médicis (1973), o Prémio Mondello (1978), o Prémio Common Wealth (1981), o Prémio Jerusalém (1985) e o Prémio Independent de Literatura Estrangeira (1991).

Talvez devido ao seu passado familiar ligado à música, Kundera terá escolhido o título do romance “ Valsa do adeus” inspirado na famosa composição de Chopin, com o mesmo título. Publicado em 1976, foi o seu último livro escrito na antiga Checoslováquia e considerado o mais divertido.

Valsa do adeus de Chopin: https://youtu.be/KE4__FnR778 

Num ambiente de águas termais, recomendadas para tratamento do coração dos homens e a esterilidade das mulheres, durante cinco dias, de segunda a sexta-feira, oito pessoas envolvem-se e afastam-se, num contínuo rodopio de encontros e desencontros, ao ritmo de uma valsa, orquestrada por Kundera com muita ironia e humor.

Narrativa rápida, inteligente, envolvente, retrata o comportamento de pessoas normais apanhadas em situações imprevisíveis. Não há verdades absolutas, antes mentiras desesperadas, muitas contradições e algumas situações pouco verosímeis.

Os temas abordados são a esterilidade, o amor não correspondido, o adultério, a depressão e o aborto. Kundera reúne neste romance todos os elementos que podem perturbar o amor. A música dá partida para o tema inicial do livro: a gravidez indesejada de uma jovem em contrapartida ao desejo de ser mãe que leva as mulheres até a estação de águas. Aos poucos, Milan Kundera apresenta-nos a outros pares, a outros temas. E, através dessas personagens, o autor levanta questões mais do que nunca atuais, como a ética dos processos de fertilização, a traição entre amigos, os limites da paixão, as armadilhas do ciúme, o despertar do erotismo, a necessidade de tomar as rédeas da própria vida ou morte. Aos poucos Kundera vai desmontando este enredo para montar um desfecho surpreendente e ousado.

Ruzena, uma jovem e bela enfermeira da casa de banhos, e Klima, um célebre músico de jazz, estão no centro duma enorme confusão amorosa, “temperada” com pormenores hilariantes.

Ruzena e Klima conheceram-se na noite em que o jovem e charmoso trompetista atuou na estância termal. Dormiram juntos. Não voltaram a ver-se. Dois meses depois (segunda-feira), ela liga-lhe e diz-lhe que está grávida “e ele ficou paralisado de terror”. Será mesmo o pai da criança? Ele diz-lhe que é “fisiologicamente impossível”. Estiveram juntos apenas uma vez. Tem de convencê-la a abortar. Como? Com promessas e mentiras.

Klima é casado com Kamila, uma bela mulher de saúde frágil, que renunciou à carreira de cantora. Ele ama-a infinitamente. Sente o coração despedaçar-se quando a vê triste. “Perde-se” em casos de infidelidade, mas volta para ela sempre mais apaixonado. Já Kamila ama o marido doentiamente. Torturada pelo ciúme não acredita em nada do que ele lhe diz. Tem medo de todas as mulheres que gravitam à volta dele. Silencia a sua desconfiança para não o enfurecer. Aprendeu a “jogar” com a tristeza para o atrair. Porque não procura ela algum conforto no mundo dos homens? Porque o ciúme possui o poder espantoso de iluminar de raios de luz intensos o ser único, mantendo a multidão dos demais homens numa obscuridade total.

Às 9.00 horas da manhã do dia seguinte, Klima chega a à estância termal. Antes de falar com a enfermeira, encontra-se com o doutor Skreta, director dos serviços de ginecologia. Tenta convencê-lo de que aquela criança não pode ser sua, que duvida até que Ruzena esteja realmente grávida. 

“- Examinei-a ontem. Está grávida – disse o médico”.

É um Klima apavorado e angustiado que se senta à frente de Ruzena.

Ela diz que nunca aceitará abortar. “Não nunca… Ele,  perde o uso da fala…” mas não da capacidade inventiva e pouco depois é uma Ruzena empolgada que confidencia às colegas: “- Ele disse que me amava e que ia casar comigo… mas não quer que eu tenha já um filho”.

Mas esta valsa não é só dançada por Ruzena e Klima. Outros dançarinos rodopiam no salão:

Bertlef (o rendeiro americano rico louco por mulheres); 

Olga (a mais antiga utente da estância termal);

Frantisek (o tresloucado namorado de Ruzena, que insiste que o filho é seu); 

Jakub, será o próprio Kundera? (o decepcionado militante do movimento politico comunista, vítima das depurações, que pretende abandonar definitivamente o país e está na estância termal para se despedir da amiga e protegida Olga, e devolver ao doutor Skreta o comprimido de veneno que em tempos este lhe havia preparado) e Kamila (que também aparecerá por lá). 

Jakub, para muitos dançarinos é um mero desconhecido, vai interferir no ritmo desta valsa. Ruzena cruza-se  com ele num café. Desagrada-lhe o seu rosto. Acha-o irónico e ela detesta a ironia. O olhar dele assusta-a. Sai apressada e esquece sobre a mesa um tubo com comprimidos. Jakub apanha-o.

Na quinta-feira o trompetista  volta a tocar na estância. A mulher, sem que ele saiba, aparece de surpresa e assiste ao concerto. Acabam por dormir na estância.

No dia seguinte, ele acorda e sai apressado do quarto. Tem de falar urgentemente com Ruzena.

Entretanto, na sala de banhos Frantisek e Ruzena discutem violentamente à frente das utentes.

Kamila, enfurecida vai à procura do marido. Num corredor encontra Jakub. Caminham lado a lado e ele fala, fala, fala. Separam-se. 

Depois daquele encontro começa a sentir-se segura de si e mais bela. O marido deixa de ser o único homem do mundo. O eventual fim do seu casamento, já não lhe inspira nem angústia nem medo. 

O que lhe disse Jakub? “Que ia partir para sempre”, “que vivera toda a vida como um cego e que não desconfiava sequer de que a beleza existisse. Ela compreendia-o. Porque acontecia a mesma coisa com ela. Também ela vivia na cegueira. Via apenas um único ser, iluminado pelo farol violento do ciúme”

O romance foi construído com o rigor de um romance clássico e fruto de uma invulgar capacidade de síntese e imaginação prodigiosa, sendo, ao mesmo tempo, um modelo de virtuosismo. Contém uma profunda reflexão sobre a alma humana, as relações pessoais, a política, a filosofia existencialista, a arte, a ciência, o cristianismo, o sexo, a amizade, a repressão que conduz a uma evidente necessidade de fuga sem no entanto deixar de se sentir uma nostalgia enorme pelo país que tem que abandonar. Todas as personagens precisam de despedir-se de algo e conseguem-no porque a vida é cheia de valsas do adeus…

Neste romance o autor aborda questões sérias de uma forma divertida, com algumas situações pouco verosímeis, ora com uma ferocidade burlesca e humor negro chocante, ora com uma forma extremamente terna com que retrata as personagens femininas.

E, finalmente, para aligeirar apetece reler o poema “Quadrícula” de Carlos Drumond de Andrade…

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

 






domingo, 1 de novembro de 2020

CLUBE DE LEITURA NOVEMBRO 2020

Com uma periodicidade mensal (à exceção de agosto), o Clube de Leitura destina-se a promover o prazer da leitura partilhada. As reuniões decorrem à volta de um livro previamente escolhido e lido por todos, proporcionando a convivência e a discussão entre quem gosta de ler e explorar os livros lidos, tornando a experiência da leitura ainda mais estimulante. Pontualmente poderá ter um escritor/dinamizador convidado.





Livro indicado: "A valsa do adeus" de Milan Kundera


Data:  26 novembro, 21h00 às 22h00

Sinopse: Numas termas, sete pessoas em busca da felicidade envolvem-se e afastam-se ao ritmo de uma «valsa» orquestrada por Milan Kundera com o seu habitual humor. Ruzena, uma bela enfermeira, Klima, um músico de jazz, Jakub, antigo militante e vítima das depurações, o doutor Skreta, diretor dos serviços de ginecologia das termas e Bertlef, o americano, são algumas das personagens que durante cinco dias se debatem nesta Valsa do Adeus, construída com o rigor de um romance clássico e fruto de uma rara capacidade de síntese e do forte poder inventivo, que caracterizam as obras do autor.


«Se queremos compreender o mundo temos que abarcá-lo em toda a sua complexidade, na sua essencial ambiguidade»


Milan Kundera, sobre A Valsa do Adeus



sexta-feira, 30 de outubro de 2020

CLUBE DE LEITURA - OUTUBRO

Ontem, pelas 21 horas, através do zoom, retomamos as sessões do Clube de Leitura que tinham sido interrompidas em março, pelas razões que todos conhecemos.

Durante a sessão houve algumas dificuldades de comunicação, mas vamos aprimorar tudo para a próxima sessão, que será no dia 26 de novembro, pelas 21h00.

A obra em análise e discussão foi "O talentoso Mr. Ripley" de Patricia Highsmith.

O Clube de Leitura completou no passado dia 25 de outubro, 8 anos de existência.

Em jeito de balanço, ao longo destes anos houve 93 sessões e foram lidos 108 livros.

Não foi possível organizar uma festa e cantar os parabéns ao nosso menino clube, mas logo que seja possível vamo-nos vingar.

"O Talentoso Mr. Ripley" foi escrito por Patricia Highsmith em 1955 e é o primeiro livro de uma saga consagrada a Tom Ripley, a "Riplíada", formada por 5 livros:

 1-The Talented Mr. Ripley (1955)

2-Ripley Under Ground (1970)

3-Ripley's Game (1974)

4-The boy who followed Ripley (1980)

5-Ripley Under Water (1991)

Nos 5 livros, Ripley comete homicídio 9 vezes e indiretamente causa 4 mortes adicionais. No 1º livro, O Talentoso Mr. Ripley, assassina Dickie Greenleaf e Freddie Miles.

Os 3 primeiros livros foram adaptados ao cinema.

O 1º, "O Talentoso Mr. Ripley", deu origem a 2 filmes:

 - "Plein Soleil", em 1960, com Alain Delon no papel de Ripley

 - "O Talentoso Mr. Ripley" (mesmo nome do livro), em 1999, com Matt Damon no papel de Ripley.

O 2º, "Ripley Under Ground", foi adaptado em 2005, com Barry Pepper no papel de Ripley.

O 3º também deu origem a 2 filmes:

-"The American Friend", em 1977, com Dennis Hopper no papel de Ripley.

-"O Jogo de Ripley" (mesmo nome do livro), em 2002, com John Malkovich. 

Como nasceu a ideia de Ripley?

Foi a própria Patricia Highsmith que contou, numa entrevista, como aconteceu.

Foi numa manhã, no verão de 1952, em Positano, Itália. A escritora (na altura com 31 anos) estava a viajar pela Europa com a namorada e albergou-se num hotel em Positano. De manhã acordou e veio até à varanda do quarto que dava sobre a praia. Foi quando viu "um jovem solitário de bermuda e sandálias, com uma toalha pendurada ao ombro, percorrendo a praia". Começou então a imaginar o que ia na sua mente mas só 2 anos mais tarde, quando iniciou o novo romance, deu vida ao seu anti-herói. 

Patricia Highsmith a partir desta visão criou o romance policial psicológico e Tom Ripley passa a ser a personagem de referência da sua obra, um dos mais "negros" do policial do pós-guerra, "um homem que não reconhece a culpa em qualquer circunstância", segundo as palavras da escritora.

A obra da autora desde cedo apaixonou os cineastas. O seu primeiro romance, "O desconhecido do Norte-Expresso seria adaptado pelo mestre Alfred Hitchcock.

Ripley é um homem vulgar, que quer sair da América. A oportunidade surge quando o Sr. Greenleaf, seduzido por uma sua prestação ao piano, enganado por um casaco da Universidade de Harvard (Ripley é muito bom a imitar, a manipular, a disfarçar), o convence a ir à Europa e trazer-lhe de volta o filho, que vive em Itália uma dolce vita, com a mesada que o pai lhe manda todos os meses.

Ripley torna-se amigo de Dickie Greenleaf e da namorada deste, mas numa discussão violenta acaba por matá-lo e assumir a sua identidade. E a partir deste momento, o perigo, o inesperado, o medo, mas também uma frieza e um calculismo extremos perante a morte, passam a fazer parte do quotidiano de Ripley, que, no entanto, é capaz de se comover e nos comover, ao assistir a um espectáculo de ópera. 

O tema central da obra é sobre a usurpação da identidade. Os 30 capítulos são de agradável leitura e leem-se a correr, sempre na expectativa de que o criminoso seja descoberto e punido, o que não vem a acontecer.

Ripley é um psicopata que conjuga em si o que é caraterístico em vários criminosos, burla, falsificação de documentos e homicídio.

Sabe mentir, imitar pessoas, é tão talentoso que consegue fazer o crime perfeito, muito embora com algumas situações pouco verosímeis. No entanto, é preciso perceber que estávamos nos anos 50 e a investigação de crimes era ainda muito pouco eficaz.

Nesta obra também nos foi permitido fazer uma viagem desde os EUA até ao sul de Itália e (Positano, S. Remo, Roma) e a França (Cannes, Paris, etc.)

Aqui deixamos algumas impressões de viagens:

“Chegou a Nápoles ao fim da tarde e só teria camioneta para Mongibello na manhã seguinte às onze. Um rapazola de mais ou menos 16 anos, de camisa suja  (...), agarrou-se a ele e, apesar dos protestos de Tom, entrou no táxi com ele e deu instruções precisas ao condutor para onde devia ir... até que finalmente o táxi parou diante de um grande hotel que dava para a baía. Tom teria ficado assustado com a imponência do hotel, se não fosse o Sr. Greenleaf a pagar as contas.

-Santa Lucía! - disse triunfalmente o rapaz apontando para o mar. 


(...)

Tom jantou nessa noite num restaurante sobre a água, chamado Zi'Teresa, que lhe fora recomendado pelo diretor do hotel.” 

 


 

“Apanhou a camioneta na manhã seguinte às onze. A estrada seguia a costa e atravessava pequenas cidades onde parava por momentos - Torre del Greco, Torre Anunciata, Castelammare, Sorrento. Tom escutava ansioso os nomes das localidades anunciadas pelo condutor. A partir de Sorrento a estrada era um estreito caminho cortado na rocha e sobre precipícios, tal como pudera observar nas fotografias dos Greenleaf. De vez em quando avistava pequenas aldeia à beira-mar, de casas brancas como pão amassado e pontos que eram de facto as cabeças das pessoas nadando junto à costa. Tom viu a rocha enorme que bloqueava a estrada e que devia ter caído da encosta. O condutor anunciou então com uma voz despreocupada:

-Mongibello!

 




(...)

Havia casas para cima, subindo a encosta, e para baixo, com os seus telhados de telha recortando-se contra o azul do mar. 

Podem acompanhar a viagem de Tom clicando no link para ver o mapa: https://www.google.com/maps/place/84017+Positano,+Salerno,+It%C3%A1lia/@40.7189665,14.34671,11z/data=!4m5!3m4!1s0x133b9768a710d21b:0x8cde0b2863cede31!8m2!3d40.6280528!4d14.4849812

Mas escusam de procurar Mongibello, que não existe. Foi inventada pela autora. Mongibello era no entanto o antigo nome dado ao vulcão Etna, na Sicília, talvez ela se tenha inspirado nele. No filme de Anthony Minghella, com o mesmo nome do livro, a turística aldeia de Positano, na Costa Amalfitana, foi usada para recriar este porto fictício de Mongibello.

Alguns dias mais tarde partia para Paris de avião (...) Aterrou em Orly às cinco da tarde (...) Depois foi dar um passeio pela noite um tanto agreste e nevoenta de Dezembro (...) Comprou o Figaro, sentou-se numa mesa do Flore e pediu um fine à l'eau, pois Dickie dissera-lhe uma vez que era a sua bebida habitual em França. (...) Era maravilhoso estar sentado num famoso café e pensar no amanhã, no amanhã e no amanhã como sendo Dickie Greenleaf. 

 


O "Café de Flore" é um famoso café de Paris, que foi muito frequentado por escritores e artistas conhecidos, como Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Picasso e Hemingway, entre outros.

"Fine à l'eau" é o nome de uma bebida que já foi muito popular em França, nas décadas de 1920 a 1960: uma medida de conhaque, alongada com 3 medidas de água. No final dos anos sessenta o seu uso começou a declinar.

Há uma referência a esta bebida no livro "Casino Royale" de Ian Fleming. Quando conhece o agente francês René Mathis, James Bond manda vir para ele, no bar, um "fine à l'eau".

E também Hemingway  introduz esta bebida num dos seus livros, "The sun also rises" ("O sol nasce sempre", na tradução portuguesa), de 1926.

Aconselhamos vivamente a leitura da obra de Highsmith, que é garantidamente de uma grande riqueza literária, mas não percam também a adaptação cinematográfica.

"Il meglio, il meglio", como dizia o perverso Ripley, no final, quando se viu finalmente "livre e senhor do dinheiro de Dickie".

Boas leituras!