sexta-feira, 27 de junho de 2014

CLUBE DE LEITURA DE JUNHO

Decorreu ontem a sessão de junho do Clube de Leitura, com a análise da obra "Irmão Lobo" de Carla Maia Almeida e ilustrações de António Jorge Gonçalves.

A opinião geral dos membros do Clube é de que é uma obra muitíssimo bem escrita com um grafismo muito cuidado e com belíssimas ilustrações. Um livro muito realista, sobre temas da atualidade como o desemprego, o divórcio, a desagregação das famílias e também sobre a morte.

Na  Revista Blimunda da Fundação Saramago, pode ler-se sobre a obra nas palavras de Andreia Brites: (...) A descrição dos estados de alma é tão cuidada que se torna impossível que o leitor não se emocione. Há uma espécie de diálogo imanente com a experiência íntima de cada um e, sem qualquer retórica universalizante, este é um livro que potencialmente se inscreve em todos os leitores. Esperança, redenção, castigo, cobardia, perda, renascimento, sobrevivência, resistência…O fôlego desta narrativa é imenso, e as ilustrações, apenas a azul e preto, deixam sinais de vazio, de vestígio, de último reduto de segurança. (...) António Jorge Gonçalves reforça momentos da narrativa com perspetivas espaciais que ampliam as inferências emocionais do texto. (...) 

No site da Editora Planeta Tangerina, pode ler-se a propósito do Prémio Nacional de Ilustração atribuído a António Jorge Gonçalves:

"António Jorge Gonçalves é o vencedor do Prémio Nacional de Ilustração 2013 com as ilustrações para o livro "Uma escuridão bonita" (texto de Ondjaki, edição Caminho).
(...)
António Jorge Gonçalves também faz parte do catálogo do Planeta Tangerina. É ele que assina as ilustrações do livro "Irmão lobo", com texto de Carla Maia de Almeida, da nossa coleção Dois Passos e Um Salto."





Porque é urgente resistir 

Resistência é escrever hoje um livro juvenil e despi-lo de todos os rótulos, todas as categorias, e levá-lo para um nível em que ombreia com todo e qualquer cânone literário, legitimado por especialistas. Escrever um livro juvenil, que se quer juvenil, que não se tem medo que seja juvenil, e que resiste a desrespeitar a inteligência e a sensibilidade dos adolescentes, que os desafia, que lhes fala, sem ideias pré-concebidas. Escrever um livro juvenil de altíssima qualidade literária, pejado de símbolos, metáforas e sentidos que se suspendem e recuperam, como na vida. Não ter medo de reproduzir esse efeito do tempo, que demora a esclarecer-nos, que demora a fazer-nos crescer. E um dia acontece, sem nada haver a fazer. A redenção final é uma catarse, não apenas dentro da estrutura narrativa, mas para o leitor. Todos precisamos dela, e nesse momento todos ficamos a saber que precisamos. 
Resistência é acreditar que abrir uma alma, mostrar uma ferida, não é uma exibição espectacular e sim um caminho de lentidão, como o de Bolota, a protagonista, e o nosso, que a acompanhamos. 

Resistência é ilustrar o desaparecimento, sem ceder a figurações. Todos os ângulos têm algo que se prolonga para além da página, algo que podemos inferir, pela leitura, mas que não está lá. Essa angústia do que já não se pode reter, conter, inverter, dão-nos os espaços que António Jorge Gonçalves desenha, manchados de azul, o azul da água que faz renascer. 

Resistência é editar um livro como este, cartonado, ilustrado, para adolescentes. Criar uma colecção juvenil, Dois Passos e Um Salto, apostar em primeiros textos, em autoras portuguesas e em novos públicos, quando o Planeta Tangerina já tinha uma identidade reconhecida, que era a do álbum, foi um risco e uma aposta editorial. A sua qualidade poderá fazer dela um caso de estudo, no que à recepção juvenil diz respeito e contribuir ainda, como aconteceu com os álbuns de recepção infantil, para que muitos adultos leiam. 

Se há algo de mágico no livro de Carla Maia de Almeida, é precisamente a forma como nós, adultos, lhe reagimos. Ninguém fica indiferente a uma história que reconhece algures em memórias vividas ou narradas. Mas, mais do que isso, a sentimentos que nos são inevitavelmente familiares e que começaram a surgir quando começámos a perder a inocência, que é algo que acontece devagar, a espaços. E depois de uma experiência dessas, já não somos os mesmos. A ingenuidade, a fantasia, o poder de acreditar ou imaginar sem limites cede um passo, dois passos, recua. E assim por diante, pela vida fora. Não é bom nem mau, é porque tem de ser. 

Essa viagem acontece a dois tempos no livro, um quando Bolota tem oito anos e percorre a Grande Travessia, de carro, com o pai, e outra, quando aos quinze narra aqueles que considera terem sido os seus antecedentes, as suas causas. A sua memória adolescente é o recurso que encontra para perceber as coisas que lhe aconteceram, como afirma logo no início. Efectivamente, a vida é muito mais a forma como a narramos do que a forma como a vivemos, que o presente nunca é algo de tangível. Se os adolescentes captam estas marcas que os ultrapassam em idade e experiência, não é assim tão relevante, porque inversamente se apropriam de outra forma, a sua, desta narrativa. 

Não há como fugir a juízos sobre o comportamento de todos os elementos da tribo, unida por regras de afecto e rituais próprios. Esta tribo, correndo o risco de surpreender pelo exotismo das alcunhas, dos diálogos em tempos de paz, é um reduto reconfortante do que pode ser uma família feliz, sem se ceder a qualquer estereótipo irreal, superficial e falacioso. Nessa verdade os adolescentes reconhecem-se, como nós, adultos. E identificam também os sintomas da doença, da crise, da urgência de sobreviver mudando. Esta resistência obriga ao sacrifício cruel de Malik, o cão que se revela, para a protagonista, o seu irmão lobo, o totem da tribo. Malik, rei ou príncipe, que aceita essa condição e se impõe perante o pai, Alce Negro, que deveria ser, mas não é, o verdadeiro líder desta comunidade. O que Alce Negro nunca perde, e isso é surpreendente e paradoxal, é essa capacidade de sonhar sem os limites que o crescimento traz. A viagem secreta que empreende com Bolota, a mais nova dos três filhos, com quem pode persistir num discurso da ordem do imaginário, é o auge desse comportamento de que todos sentimos falta mas que todos criticamos, e cujo desenlace adivinhamos. Há um sentido trágico nesta relação entre o sonho, a crença e o quotidiano: as duas formas, antagónicas, de resistir dos pais destroem a tribo e transformam-na numa família, com laços que se podem manter à distância, mesmo que partilhando a mesma casa. 

Contudo, a narrativa é simples porque se faz muito mais de observações, perplexidades e pensamentos, do que de análises morais ou grandes teorizações. As duas vozes são nisso fiéis às idades da protagonista, sem que se pressinta uma ruptura de ritmo ou de tom. Bolota é a mesma, e aquela fase que terá durado um ano, dois anos, não mais, foi um condensado de perdas sucessivas de inocência, que se sentiram mas não foram assimiladas. Por isso a presença do fogo e da água, como elementos purificadores, é paradigmática. Por isso o azul das páginas actuais substitui o branco da infância.  

Aos quinze anos, Bolota quebra com dedicação e prazer a resistência da água, a cada braçada. E a novela fecha-se com um passo noutra direcção, nascida provavelmente dessa perda, porque a vida se faz vivendo e resistir implica também integrar e mudar. Em algum momento, todos os leitores o sabem, o pressentem. E mesmo que disso não fique memória, não serão exactamente os mesmos. É isso que este livro faz.  
Andeia Brites
25.05.2013 

Sem comentários:

Enviar um comentário