Decorreu ontem a sessão de junho do Clube de Leitura, com a análise da obra "Irmão Lobo" de Carla Maia Almeida e ilustrações de António Jorge Gonçalves.
A opinião geral dos membros do Clube é de que é uma obra muitíssimo bem escrita com um grafismo muito cuidado e com belíssimas ilustrações. Um livro muito realista, sobre temas da atualidade como o desemprego, o divórcio, a desagregação das famílias e também sobre a morte.
Na Revista Blimunda da Fundação Saramago, pode ler-se sobre a obra nas palavras de Andreia Brites: (...) A descrição dos estados de alma é tão cuidada que se torna impossível que o leitor não se emocione. Há uma espécie de diálogo imanente com a experiência íntima de cada um e, sem qualquer retórica universalizante, este é um livro que potencialmente se inscreve em todos os leitores. Esperança, redenção, castigo, cobardia, perda, renascimento, sobrevivência, resistência…O fôlego desta narrativa é imenso, e as ilustrações, apenas a azul e preto, deixam sinais de vazio, de vestígio, de último reduto de segurança. (...) António Jorge Gonçalves reforça momentos da narrativa com perspetivas espaciais que ampliam as inferências emocionais do texto. (...)
No site da Editora Planeta Tangerina, pode ler-se a propósito do Prémio Nacional de Ilustração atribuído a António Jorge Gonçalves:
"António Jorge Gonçalves é o vencedor do Prémio Nacional de Ilustração 2013 com as ilustrações para o livro "Uma escuridão bonita" (texto de Ondjaki, edição Caminho).
(...)
António Jorge Gonçalves também faz parte do catálogo do Planeta Tangerina. É ele que assina as ilustrações do livro "Irmão lobo", com texto de Carla Maia de Almeida, da nossa coleção Dois Passos e Um Salto."
António Jorge Gonçalves também faz parte do catálogo do Planeta Tangerina. É ele que assina as ilustrações do livro "Irmão lobo", com texto de Carla Maia de Almeida, da nossa coleção Dois Passos e Um Salto."
Porque
é urgente resistir
Resistência é
escrever hoje um livro juvenil e despi-lo de todos os rótulos, todas as categorias,
e levá-lo para um nível em que ombreia com todo e qualquer cânone
literário, legitimado por especialistas. Escrever um livro juvenil, que se
quer juvenil, que não se tem medo que seja juvenil, e que resiste a
desrespeitar a inteligência e a sensibilidade dos adolescentes, que os
desafia, que lhes fala, sem ideias pré-concebidas. Escrever um livro juvenil
de altíssima qualidade literária, pejado de símbolos, metáforas e sentidos que
se suspendem e recuperam, como na vida. Não ter medo de reproduzir esse
efeito do tempo, que demora a esclarecer-nos, que demora a fazer-nos
crescer. E um dia acontece, sem nada haver a fazer. A redenção final é uma
catarse, não apenas dentro da estrutura narrativa, mas para o leitor.
Todos precisamos dela, e nesse momento todos ficamos a saber
que precisamos.
Resistência é acreditar que abrir uma alma, mostrar
uma ferida, não é uma exibição espectacular e sim um caminho de lentidão,
como o de Bolota, a protagonista, e o nosso, que a acompanhamos.
Resistência é
ilustrar o desaparecimento, sem ceder a figurações. Todos os ângulos têm algo
que se prolonga para além da página, algo que podemos inferir, pela leitura,
mas que não está lá. Essa angústia do que já não se pode reter, conter,
inverter, dão-nos os espaços que António Jorge Gonçalves desenha,
manchados de azul, o azul da água que faz renascer.
Resistência é
editar um livro como este, cartonado, ilustrado, para adolescentes. Criar
uma colecção juvenil, Dois Passos e Um Salto, apostar em primeiros textos,
em autoras portuguesas e em novos públicos, quando o Planeta Tangerina já
tinha uma identidade reconhecida, que era a do álbum, foi um risco e uma
aposta editorial. A sua qualidade poderá fazer dela um caso de estudo, no
que à recepção juvenil diz respeito e contribuir ainda, como aconteceu com
os álbuns de recepção infantil, para que muitos adultos leiam.
Se há algo
de mágico no livro de Carla Maia de Almeida, é precisamente a forma como
nós, adultos, lhe reagimos. Ninguém fica indiferente a uma história que
reconhece algures em memórias vividas ou narradas. Mas, mais do que isso,
a sentimentos que nos são inevitavelmente familiares e que começaram a
surgir quando começámos a perder a inocência, que é algo que acontece
devagar, a espaços. E depois de uma experiência dessas, já não somos os
mesmos. A ingenuidade, a fantasia, o poder de acreditar ou imaginar sem limites
cede um passo, dois passos, recua. E assim por diante, pela vida fora. Não é
bom nem mau, é porque tem de ser.
Essa viagem
acontece a dois tempos no livro, um quando Bolota tem oito anos e
percorre a Grande Travessia, de carro, com o pai, e outra, quando aos
quinze narra aqueles que considera terem sido os seus antecedentes, as
suas causas. A sua memória adolescente é o recurso que encontra para perceber
as coisas que lhe aconteceram, como afirma logo no início. Efectivamente,
a vida é muito mais a forma como a narramos do que a forma como a vivemos,
que o presente nunca é algo de tangível. Se os adolescentes captam estas
marcas que os ultrapassam em idade e experiência, não é assim tão
relevante, porque inversamente se apropriam de outra forma, a sua, desta narrativa.
Não há como fugir a
juízos sobre o comportamento de todos os elementos da tribo, unida por
regras de afecto e rituais próprios. Esta tribo, correndo o risco de
surpreender pelo exotismo das alcunhas, dos diálogos em tempos de paz, é
um reduto reconfortante do que pode ser uma família feliz, sem se ceder a
qualquer estereótipo irreal, superficial e falacioso. Nessa verdade os
adolescentes reconhecem-se, como nós, adultos. E identificam também os
sintomas da doença, da crise, da urgência de sobreviver mudando. Esta
resistência obriga ao sacrifício cruel de Malik, o cão que se revela, para
a protagonista, o seu irmão lobo, o totem da tribo. Malik, rei ou
príncipe, que aceita essa condição e se impõe perante o pai, Alce Negro,
que deveria ser, mas não é, o verdadeiro líder desta comunidade. O
que Alce Negro nunca perde, e isso é surpreendente e paradoxal, é essa
capacidade de sonhar sem os limites que o crescimento traz. A viagem
secreta que empreende com Bolota, a mais nova dos três filhos, com quem
pode persistir num discurso da ordem do imaginário, é o auge desse
comportamento de que todos sentimos falta mas que todos criticamos, e
cujo desenlace adivinhamos. Há um sentido trágico nesta relação entre o
sonho, a crença e o quotidiano: as duas formas, antagónicas, de resistir
dos pais destroem a tribo e transformam-na numa família, com laços que se
podem manter à distância, mesmo que partilhando a mesma casa.
Contudo, a
narrativa é simples porque se faz muito mais de observações, perplexidades
e pensamentos, do que de análises morais ou grandes teorizações. As duas
vozes são nisso fiéis às idades da protagonista, sem que se pressinta uma
ruptura de ritmo ou de tom. Bolota é a mesma, e aquela fase que terá
durado um ano, dois anos, não mais, foi um condensado de perdas sucessivas
de inocência, que se sentiram mas não foram assimiladas. Por isso a
presença do fogo e da água, como elementos purificadores, é paradigmática.
Por isso o azul das páginas actuais substitui o branco da infância.
Aos quinze anos,
Bolota quebra com dedicação e prazer a resistência da água, a cada braçada.
E a novela fecha-se com um passo noutra direcção, nascida provavelmente
dessa perda, porque a vida se faz vivendo e resistir implica também
integrar e mudar. Em algum momento, todos os leitores o sabem, o
pressentem. E mesmo que disso não fique memória, não serão exactamente os
mesmos. É isso que este livro faz.
Andeia Brites
25.05.2013
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