Na passada 5ª feira, pelas 21h00, na Biblioteca Municipal, decorreu mais uma sessão do Clube de Leitura, desta vez para a abordagem da obra "O ano da morte de Ricardo Reis" de José Saramago.
Em boa hora fomos brindadas com a presença de um dos elementos do Clube,
que é especialista também nesta obra. Daí que se tornou ainda mais
fascinante perceber a sua complexidade e alguma simbologia que não se vislumbra
facilmente.
Esta obra é um verdadeiro tratado de intertextualidade, ou seja,
Saramago recria uma personagem a partir de outra, já criada por Fernando
Pessoa.
Foi uma das obras prediletas de Saramago, em que o protagonista é Ricardo
Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, que desembarca em Lisboa, em
1936, vindo do Brasil onde se havia refugiado por motivos políticos.
Este trágico ano é para Saramago o verdadeiro protagonista do livro, por ser
o ano em que ocorreram factos terríveis. As camisas verdes dos salazaristas
aliam-se às camisas negras, castanhas, azuis dos fascistas, nazis e
falangistas. Há a guerra na Etiópia e uma revolta militar conduz Espanha à
Guerra Civil.
O espectador é Ricardo Reis que assiste a todos estes acontecimentos
e Saramago, através da sua mestria literária, conduz-nos a esta sombria época,
que mais tarde vem a degenerar na 2ª Guerra Mundial.
Conhecemos Ricardo Reis, como um dos 4 heterónimos mais conhecidos de
Fernando Pessoa, imaginado em 1913. Nasceu no dia 19 de setembro de 1887,
natural do Porto, de educação jesuítica, possuía uma formação clássica,
latinista e semi-helenista, adquirida de forma autodidática. Gostava de andar a
cavalo e comportava-se como um aristocrata. Na sua biografia não se sabe a data
da sua morte. Publica as suas 8 odes entre 1927 e 1930, na revista
Presença, de Coimbra.
Torna-se médico e por ser monárquico expatriou-se de livre vontade para o
Brasil.
Quando regressa a Portugal abre um consultório para tentar a sua reinserção
na sociedade, mas Reis é um
homem cheio de contradições.
Ana Paula Arnaut, docente da Universidade de Coimbra, no congresso
Internacional “José Saramago: 20 anos como Prémio Nobel”, afirma que “Para
compormos o retrato do ‘outro’ Ricardo Reis, de Saramago, que é também o ‘um’,
de Pessoa ou vice-versa, há que entrar no jogo, tão ao gosto do poeta
modernista, e fingir tão completamente que chegamos a fingir aceitar como
pessoa a pessoa que deveras o é”, disse, tendo em mente o célebre poema
pessoano “Autopsicografia”.
É efetivamente uma criação Pessoana reajustada do universo alternativo que
o romance de Saramago consubstancia.
Reis não fica indiferente ao espetáculo do mundo em que viveu, em 1936, ano
em que deflagrou a Guerra Civil Espanhola, em Portugal ocorreu o
levantamento contra a ditadura de Salazar com a Revolta dos Marinheiros.
A diferença entre Ricardo Reis e o original decorre não só da dimensão
carnal que vive, em nítido abandono do estoicismo porque o outro pauta a sua
vida.
O Ricardo Reis de Saramago é-nos apresentado com algumas características
semelhantes ao original, mas aqui não é tão apático, é sentimental, culto,
informado, sensível e humano.
Apesar da obra não ser considerada um romance histórico, há uma grande riqueza de factos históricos, sociais,
políticos, sentimentais, etc.
Tão rica que até nos surge uma personagem feminina muito interessante, "Lídia à beira rio", uma mulher
com M grande, humilde, analfabeta, mas segura de si, emancipada, que decide ter
um filho de Ricardo Reis.
Há muito de Saramago nesta obra, a sua ideologia política está expressa em alguns momentos e também quando refere na página 188 que
"...a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer
companhia a alguém ou alguma coisa que está dentro de nós…"
Esta é uma obra emblemática, que certamente lhe exigiu não só um profundo conhecimento da obra pessoana, mas também um grande estudo daquele período histórico, o que fez Pilar del Rio vir de Espanha a
Portugal, conhecer Saramago, fazê-lo viver uma paixão avassaladora e acabar com
a sua solidão.
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