Ontem,
pelas 21h00, na biblioteca municipal, decorreu mais uma sessão do Clube de
Leitura de Julho com a abordagem da obra "Princípio de Karenina" de Afonso Cruz.
Foi
por opinião unânime que se considerou este livro como um dos mais descarnados e
concisos e ao mesmo tempo dos mais belos do escritor. Não só pela narrativa,
mas pelas reflexões, pelas citações, a imagem gráfica bastante cuidada, com
fotografias no início de cada capítulo e que folheando nos sugerem imagens
em movimento. A
leitura foi agradável, o vocabulário riquíssimo, muita subtileza e algum
suspense.
Construído
com frases curtas em cinco capítulos, com descrições cinematográficas,
linguagem intimista e slogans poéticos como “a imperfeição conquistará o
mundo”, “reconheço-te desde sempre” ou “vou até ao meu primeiro dia” e
onde a
narração, mais até do que o diálogo, tem peso central.
Afonso
Cruz confessa que se deixou influenciar mais por filósofos do que outros escritores,
mas também é notório o seu vasto conhecimento, desde a cultura e mitologia
grega, filosofia, literatura. Tudo isto deambula pela sua obra.
Princípio de Karenina, é
bastante diferente dos anteriores. É o próprio Afonso Cruz que o admite: “É
raro escrever livros como este, em que há uma história do princípio ao fim que
não inclui outras histórias. É a história de uma personagem”.
A
obra imagina uma carta escrita por um homem à sua filha, que não conheceu. Na verdade tiveram um
encontro fortuito, que foi mais um desencontro, narrando-lhe a sua vida desde a
infância.
“Eu
seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo”. Assim
começa o romance, numa espécie de diálogo com o início do magistral Ana Karenina, de Tolstoi,
que arrancava com a famosa frase: “Todas as famílias felizes se parecem, todas
as infelizes são infelizes à sua maneira”.
Aborda
temas da atualidade, embora de forma metafórica, sobre a existência de barreiras
em relação às outras culturas e à ideia do outro. Explora também o conceito de barbarie,
de erguer muros, construir fronteiras, num período em que se volta a falar
nelas. Também da recusa das ideias de fora, exógenas, quando na realidade todos
somos feitos de uma absorção de ideias, da crescente absorção e evolução das línguas dos
povos. A diversidade é que dá a mistura do que somos hoje.
Erguer
muros não é uma forma de segurança, mas de uma prisão, simplesmente por medo do
desconhecido. Mas o estrangeiro, o outro, já está presente, sem qualquer
possibilidade de retorno e o autor faz-nos perceber isso quando nos conta que “Depois
das batatas e das bactérias e do amor e da irresponsabilidade e da ida à praia
e das conchas, comecei a encontrar-me cada vez com mais assiduidade com esse
tal estrangeiro e a perceber que ele nos envolve e se mistura nas nossas vidas
sem que nos apercebamos sequer da sua presença, apesar do tonitruante e
penetrante e inescapável: a cadela Chihuahua que corria pelos corredores
era de raça mexicana e o seu nome, Gina, devia-se a uma atriz italiana (Lollobrigida);
o café vinha do Oriente ou de Timor ou do Brasil ou da Colômbia; os sapatos do
meu pai eram italianos; as nuvens traziam dentro delas gotas de mares
distantes; os livros da nossa biblioteca eram maioritariamente assinados por
gregos e romanos; as colónias das tias eram francesas; Colónia é na Alemanha; o
milho era da América do Central; o nome do salão de dança da vila era um
trocadilho inglês (coincidance; os tomates era americanos; a Bíblia era semita
e Deus tinha encarnado num estrangeiro, num judeu; o latim da missa era romano,
assim como os esgotos; os números eram árabe; o açúcar vinha do Brasil; o
pinheiro de Natal era nórdico; os árabes trouxeram laranjas e melão; o arroz e
as massas vieram da Ásia; a bolacha Maria foi criada por um padeiro inglês; o
ser humano nasceu em África, o nome de Salazar era espanhol; as cartas de jogar
vieram da China; a canela do arroz doce era indiana; a única verdadeiramente
nativa da Europa era a couve, tudo o resto era estrangeiro, a amêndoa veio do
Afeganistão, as maçãs do Cazaquistão, os pêssegos da Pérsia, o damasco não veio
de Damasco mas da Arménia, a alcachofra, da Palestina; nós, todos nós, somos pó
de estrelas…” .
E também as tâmaras voaram de Hong-Kong...
Afonso
Cruz encaminha-nos neste romance da educação opressiva e fechada "o meu
pai fez-me coxo da cabeça" até a uma abertura para o mundo e a sua
consequente libertação.
É a vida de todos nós, em que a infelicidade é diversa e
a felicidade uma utopia.
Sem comentários:
Enviar um comentário