Este livro já foi adaptado para cinema com
o título "Bacurau", nome de pássaro noturno, pelo cineasta Kleber
Mendonça Filho e Juliano Dornelles, recebendo o prémio do júri do Festival de
Cannes. Filme e livro foram feitos por nordestinos que fazem questão de
denunciar a manutenção de um regime de escravatura, numa sociedade rural, com
características ainda feudais que se prolonga pelo século XXI e a consequente
resistência contra o poder, com a violência chocante que nos chega através das
notícias.
Na opinião de Paulo Werneck, que foi membro
do júri do prémio, a obra remete-nos para o ambiente de "Lavoura
arcaica" de Raduan Nassar e trata-se de um romance político. Itamar
reconhece que "há uma dimensão política como em tudo que diz respeito à
experiência humana" e “O que nos move é aquilo que nos
incomoda. Para mim é quase indissociável fazer arte, no meu caso literatura,
sem ser provocado por alguma coisa. Esse é o sentido da arte, aquilo que nos
toca, a experiência humana. E vejo a política como uma dimensão da vida humana.
O facto de hoje se compartimentar o que é política e o que não é política abre
um vazio e a possibilidade de ele ser preenchido, por exemplo pela extrema
direita. Não vejo a vida dissociada da política.”
Em Torto Arado conta-se, a três
vozes, a história de uma família que vive num quilombo (comunidades
auto-organizadas de escravos libertados) no sertão da Bahia, uma região
semi-árida. O leitor acompanha as vidas de Bibiana e de Belonísia, filhas de
trabalhadores rurais, e com elas também a evolução da sua família – o pai era
um curandeiro e líder espiritual – e dos movimentos de insubordinação pela
posse da terra. Ao longo do romance, vai-se esboçando um quadro de injustiça e
de imposição de servidão aos trabalhadores rurais. O modo de vida vai
evoluindo: é construída uma escola depois de muito esforço, há um hospital a
que se tem acesso apenas em casos gravíssimos, como o que ocorre no início da
narrativa. Mas aquilo que vai sobressaindo é a imobilidade das estruturas
sociais e fundiárias, a servidão que é disfarçada com um sentimento de gratidão
dos explorados por poderem trabalhar naquela propriedade e serem pagos quase
sempre em géneros, a desconfiança com que são olhados aqueles que tentam mudar
as coisas.
Parece, mas não é, uma coisa de ontem:
“Os grandes proprietários continuam ditando como é que se vive nesses lugares,
continuam explorando os trabalhadores, continuam matando opositores”, afirma
Itamar Vieira Junior. “O que é uma coisa impensável no século XXI. A trama
deste romance termina nos dias de hoje, e eu gostaria de dizer: isto não existe
mais no Brasil, está datado. Mas não, isto é a realidade. No ano de 2017, 70
trabalhadores rurais que de alguma forma lideravam [grupos] pedindo mudanças
foram assassinados. E esses actos continuam sem ser esclarecidos. É claro que
existe uma vontade muito forte de manter este estado de imobilidade. Existem
também inúmeros conflitos de fazendeiros, madeireiros, com as populações indígenas
que vivem em reservas, que vêem a sua terra invadida, que são expulsas
por força do capital, por força do agro-negócio, da expansão agrícola. Esses
problemas não são enfrentados efectivamente pelo Estado brasileiro.”
Em "Torto arado"
viajamos até ao Brasil, a terras do interior da Bahia de S. Salvador,
permitindo-nos aprofundar conhecimentos sobre a história e cultura do Brasil e
do povo brasileiro, sobretudo os afro-brasileiros. Desde a captura e
tráfico de escravos em África até serem leiloados em mercados de Olinda,
Bahia, etc. Tudo isto porque os índios não conseguiam resistir ao
trabalho escravo e tinham que ser substituídos por outra força de trabalho.
Percebemos também aquela miscelânea de
crenças religiosas e todo o misticismo que hoje ainda prevalece na cultura
brasileira que se torna por vezes absurda mas ao mesmo tempo fascinante.
Tanto conhecimento expresso..
certamente porque o autor é doutorado em estudos étnicos e
africanos.
Belo livro! Boa escolha!
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